maio 09, 2022

Pensamentos de Piloto Automático.

Em uma estrada conhecida e vazia, sem muito para prender atenção a não ser a luz dos postes passando rápida, regular e monotonamente pela janela como se fosse o motorista que tivesse em repouso a atenção é desviada para o alto do para-brisas onde a pálida luz de uma meia-lua crescente luta para trespassar as nuvens de chuva, fazendo as gotas que resistiram ao vento e ao limpador brilharem como as estrelas escondidas pelo mal tempo.

O céu dividido entre luz e sombras chama a atenção perigosamente desviando o olhar do asfalto cinza e malhado por remendos mal feitos.

A cada curva a lua, como uma criança levada, brinca no para-brisas, ora no meio, ora nos cantos, às vezes até se escondendo atrás da coluna e espiando sorrateiramente na ponta da janela lateral. A mente distraída se diverte, pensa e coisas leves e se deixa relaxar. O caminho não é percebido e passa mais rápido que o relógio indicaria.

À frente, luzes vermelhas das lanternas e sinais trazem de volta a realidade noturna de um trânsito onde precisamos nos defender da imperícia e abuso dos outros que se enxergam como motoristas.

Dali para frente, a atenção voltada para apenas para o trânsito caótico da cidade, a lua em seu estado crescente é deixada de lado, mas não sem remorso. Apenas ao término da viagem há a necessidade urgente de olhar o céu e a impressão que a lua se aproxima do horizonte, humilhada por ter sido trocada por coisas tão banais e ainda assim com o orgulho de não perdoar ser trocada e não ficar mais um minuto que seja no céu para a admiração de pessoas tão preocupadas com coisas pequenas.

maio 03, 2022

Dissonâncias.

"Mente sã em corpo são" foi uma frase dita à exaustão nos anos 1970 e 1980, época que começou um forte movimento de culto ao corpo belo e à boa forma. Hoje estamos voltando ao culto ao corpo são, já a mente... ah essa tem que ter alguma depressão ou ansiedade ou algum distúrbio psicológico autodiagnosticado da moda.

A frase que inicia esse texto prega a união entre corpo e mente, coisas que não podem sobreviver separadas. Coisas que lutam para não se separarem.

A dissonância que destrói não tão lentamente uma pessoa é seu corpo estar onde sua vontade quer estar e sua mente presa onde deveria estar. Todas as sensações e percepções que temos se tornam pálidas, esfumaçadas pois nossa mente não está próxima para absorver todos os estímulos que os sentidos do corpo captam. Sabendo que a mente nunca acompanha o corpo, o corpo já não quer ceder à vontade, à necessidade de estar nos lugares que precisa para relaxar, para se curar, para se fortalecer e, com isso, dividir essa força com a mente encarcerada. A mente presa tenta a todo custo prender o corpo e quando a vontade se sobrepõe a isso cria um processo que lentamente leva à ruptura. Não é indolor.

A mente nunca quer estar presa em uma situação, é como querer prender um som em uma caixa, a imobilidade irar levar à exaustão e ao declínio e, finalmente, à extinção. A mente presa não quer o corpo longe, não quer a vontade se manifestando, ela quer a inércia para não perceber a passagem inexorável do tempo. Não é culpa dela, ela sabe, ela apenas está presa numa espiral de onde não há escapatória fácil ou possível.

Quando a mente e o corpo finalmente dividem o mesmo ambiente a mente quer usar o corpo para fugir, mas por questões de dever, sabe que não vai, mesmo quando pode, mesmo por uns momentos. Por isso ela deixa a vontade e a necessidade de alívio levarem o corpo para longe, por mais que essa tensão provocada da distância seja dolorosa.

Com o tempo, o frágil cordão que une os dois entes tão necessários vai se esgarçando, puindo, chegando perto da ruptura. Quando a ruptura se faz presente, tanto o corpo quando a mente dividirão o mesmo espaço, mas não mais se reconhecerão.